A aldeia hippie de Arembepe, a cerca de 50 quilômetros de Salvador, na Bahia, é o que se pode definir como o que restou do espírito de Woodstock. Separado do centro por uma estrada de terra, o local ficou conhecido entre o final dos anos 60 e o início da década de 1970 quando “doidões” do mundo inteiro o elegeram como moradia temporária. Entre os seus “habitantes” mais ilustres estão o cineasta Roman Polanski, a cantora Janis Joplin (cujo local onde ficava sua casa está atualmente indicado com uma placa) e o cantor dos Rolling Stones Mick Jagger – os dois últimos homenageados até hoje em um texto pendurado no centro de artesanato, onde os moradores atuais vendem colares, brincos, pulseiras e outras peças feitas com sementes, couro, pedras e dentes de animais.
Não é difícil imaginar por que os hippies tenham escolhido a aldeia de Arembepe como o seu refúgio. Formada por dunas repletas de coqueiros, a região é cercada pela praia, de um lado, e pelas lagoas do rio Capivara, de outro. É ali onde os moradores tomam banho, já que não há energia elétrica, água encanada e tampouco banheiro. Embora muito simples, as cerca de 20 cabanas chamam atenção pela arquitetura. Algumas casas têm garrafas de vidro aparentes no lugar dos tijolos, outras são feitas de barro ou de palha e ripas de madeira. Na cozinha, do lado de fora, geralmente há apenas um forno a lenha e poucos utensílios.
O nível de preservação do local impressiona – o principal motivo talvez seja o fato de não entrarem carros ali. “Os horizontes e os espaços amplos daqui são minha fonte de inspiração”, conta o baiano Edy, 28 anos de idade e 10 de aldeia hippie. “Os olhos são capazes de enxergar coisas que estão além do alcance, basta querer ver”, diz o pintor, que vive de seus quadros e também dando aulas de capoeira. “A arte está dentro de todos. Em alguns casos, está cochilando. É preciso despertá-la”, filosofa, antes de subir em um coqueiro altíssimo e pegar alguns cocos com a maior naturalidade. Para abri-los, bastou socar contra o tronco da árvore: “parece champanhe”. Segundo ele, existem cerca de 30 pessoas morando na aldeia atualmente, mas esse número é variável. “As pessoas viajam muito.”
É o caso de Rosana, 32 anos. Sua mãe, conhecida como Pola – “de tanto tomar chá de papoula”- fugiu de casa no interior da Bahia aos 17 anos e foi uma das primeiras hippies a chegar em Arembepe. Rosana nasceu na aldeia, fruto do amor de sua mãe por outro hippie. Na adolescência, decidiu seguir os passos de seus pais. Durante os últimos 15 anos ela viajou pelo Brasil inteiro e por toda a América do Sul vendendo artesanato e pedindo carona. Há poucos meses ela retornou com o companheiro uruguaio e seus quatro filhos – Ariel, 15, Sidarta, 9, Anahynayá, 6, e Queñoa Kauin, 3 - “para descansar”.
Rosana não tem conta no banco, mas seu companheiro acessa e-mail e internet no centro da cidade. Ela conseguiu tirar os passaportes da família inteira com os R$ 1.000 que ganhou de uma vez só ao vender suas peças a uma americana. “Tinha muita vontade de conhecer os lugares, então botei a cabeçona no mundo”, diz a moça, misturando palavras em português e espanhol. “Sonhar é gratuito e não ocupa espaço. Não tenho parente que me ajude, mas tenho as garras da minha mãe. Acredito numa luz, peço que eu saiba encarar as dificuldades. Quando estou num perrengue, sei que as coisas vão fluir e a gente acaba materializando um almoço. Essa laranja vai ser a minha refeição hoje, e a gente vai resolvendo as coisas aos poucos. Prefiro estar com a barriga cheia do que ter um rádio a pilha.”
Para ela, a filosofia hippie mudou muito nos últimos anos, mas a aldeia ainda conserva alguns valores. “Hoje a gente até pode dividir um rango, mas sempre aparecem muitas pessoas do nada pra comer e não lavam um prato, não se apresentam. Isso não significa que o sonho acabou, esse lugar só existe por causa das pessoas que estão aqui. Se não fossem elas talvez a aldeia estivesse dominada por traficantes. Ainda falam muito mal da maconha, mas a pedra [crack] está matando as pessoas nas cidades. Nós mesmos não queremos água encanada nem energia elétrica. Pagamos um preço alto por ter uma vida alternativa.”
Os habitantes da aldeia hippie são muito receptivos, no entanto comprar artesanato ou algo que produzam obviamente ajuda na integração. Diante da hipótese de ser fotografada, eventualmente uma criança pede R$ 1 “para comprar doce”. Mas nada atrapalha a convivência entre os locais e as pessoas de fora. Se algo causa estranheza, nada vai além das consequências naturais da falta de banho ou de certos costumes estéticos como a depilação. Em geral os moradores mantêm suas casas abertas e aproveitam a passagem de turistas para garantir o dinheiro daquele dia.
Um dos moradores mais antigos da aldeia hippie, Manuel da Luz se mudou para lá vindo da vizinha Jacuípe em 1972, quando tinha 12 anos. Dono de uma vasta cabeleira arrumada em enormes dreadlocks - penteado adotado por quase todos os habitantes locais - Manequinha ou Seu Da Luz conta com a ajuda da mulher e das filhas para fazer pães recheados com goiabada, vendidos a R$ 4. Em todos esses anos, ele pouco saiu da aldeia - um dos "luxos" de sua casa é um pequeno televisor em branco e preto alimentado por uma bateria.
Um dos assuntos que mais o agradam é música - o vozeirão já denuncia. Manequinha tem até CD gravado - ele conta que entende de arranjo e pode fazer qualquer um cantar afinado - mas uma boa maneira de vê-lo ao vivo é durante o Festival Internacional de Cultura Alternativa de Arembepe, quando a aldeia recebe shows de diversos artistas. O FICA acontece todos os anos em janeiro durante a lua cheia.
O artista plástico da região, Luiz Cerqueira, está na aldeia há 20 anos e sua residência, repleta de telas e camisetas, fica no alto de um morro e tem uma das melhores vistas de Arembepe. Ali, é possível bater um papo com o proprietário e admirar o pôr-do-sol em uma cadeira estrategicamente posicionada de frente para uma ampla janela. “Esse é o meu melhor quadro”, sorri, observando a cena.
Fonte: G1
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